sábado, 5 de novembro de 2016

Ensaio sobre a cegueira

Texto de fevereiro 2010

Meu ritmo de leitura de férias anda fraco este ano, apesar de poder dizer que os únicos dois livros que eu acabei de ler até agora foram certamente livros úteis. Memórias de minhas putas tristes e Ensaio sobre a cegueira. Mas, este último merece mais destaque. É difícil demais dar uma opinião não spoiler sobre o livro então aviso desde já que o texto abaixo contêm revelações sobre o enredo. Mas, antes quero resumir um pouco do que se trata a história. Um resumo grande que obviamente contêm spoilers, mas tanto spoiler quanto a contra-capa ou o resumo do filme contêm. Recomendo para quem pretende ler o livro que não leia nem o resumo, porque sinceramente eu li sem saber do que se trata e foi muito surpreendente.

Ensaio sobre a cegueira trata do grande mal branco. Uma onda de cegueira que faz com que a vista das pessoas seja encoberta por um "pano" branco. O que surge como uma doença misteriosa que se apresenta repentinamente enquanto um homem está dirigindo se espalha pelas pessoas que tiveram contato com ele e por aí se espalha. E logo estas pessoas são levadas para um antigo manicômio a fim de serem postas em quarentena pelo governo e coordenados pelo exército. Sendo que o medo da contaminação é grande o suficiente de forma que eles não receberão nenhuma ajuda, pouca comida, algum material de limpeza inicialmente, nenhum medicamento, ninguém com olhos para os guiar... Nenhuma ajuda exterior. Mesmo que alguém morra, eles, os novos cegos, deverão enterrá-lo, queimar o próprio lixo... Sem visão e confinados a um local que não conhecem a vida dos primeiros cegos é complicada, mas quando o mal branco se torna um problema global, a loucura parece prestes a se espalhar. E entre os contaminados há um médico oftamologista e com ele, sua esposa. A única pessoa que permanece com a visão dentro do manicômio, como se fosse imune a cegueira que se espalha.

Opinião Spoiler do livro

De meus anos de estudante de humanas aos meus anos de aspirante a jornalista, aprendi inúmeras técnicas de resenha. Aprendi também que prefiro evitar usá-las. Ensaio sobre a cegueira é um livro denso que me pegou de surpresa. A simples curiosidade perante o título e a fama de José Saramago impulsionaram minha leitura em seus primórdios. Todavia, um livro contêm uma história e este eu resolvi encarar sem conhecimento prévio. E de início foi bem interessante, o primeiro cego, do nada, todo o terror do mal branco e logo o aprisionamento e o golpe de mestre da mulher do médico. É fato de que ela narra toda a história e é o eu-lírico que reproduz o que ocorre no "manicômio". A sujeira, os dejetos, toda a porquidão... Não é um conto de fadas, é como de fato a sociedade se comportaria em situações destas. A contaminação crescente, de início nos acostumamos a primeira camarata e aos seus seis personagens de destaque. Todos com seus erros, aflições, pecados, vergonhas ... o medo dos soldados e depois o óbvio surgimento de uma camarata que tenta sobrepujar as outras. Claro que em minha opinião boa parte dos sofrimentos causados pela terceira camarata do lado direito poderiam vir a ser evitados se a mulher do médico tivesse tomado uma decisão antes, mas provavelmente ela não teria como imaginar a situação que os mesmos iriam criar e a presença de uma arma de fogo realmente é capaz de silenciar até aqueles que não a vêem. Da simples entrega dos pertencentes de valor até a óbvia humilhação das mulheres, que certamente é um dos pontos que mais me irritou com a descrição dos tipos que ali viviam e não falo dos malfeitores. O fato é que no momento que os homens deixaram bem claro que as mulheres deveriam se sacrificar, eles também deixam claro que eles não passariam por esta humilhação. Humilhação esta que deveras me chateia, afinal eu possuo um tanto daquela chama feminista que não tolera o jeito como as pessoas - homens e mulheres - pensam do sexo feminino e como parece direito que as mulheres se submetam. Admito que o fato do médico ter se deitado com a mulher de óculos escuros enquanto sua esposa via, me tirou um pouco do sério. Principalmente considerando que o livro não mostra em momento algum que ele tomou a mulher para si, por vergonha na frente de outros. Todavia, não teve problema em se deitar com uma "estranha" quando todos poderiam ouvir.  E quando a mulher do médico, munida de força que só a raiva, a vingança e a necessidade de providência podem criar. Refiro-me a simplesmente acabar com a garganta de alguém com uma tesoura e matar outros dois. |Obvio que o fato dela não ter pego o revolver me revoltou bastante, foi idiota, mas as pessoas fazem coisas idiotas. Prefiro não mencionar o incêndio, aquilo foi de sobremaneira idiota pelas proporções catastróficas causadas. Claro, que se não fosse por isto, não haveriam se atrevido a sair. E ao sair do manicômio, o mundo que encontram é genialmente descrito. Todo o horror e a naúsea, o que a humanidade faz quando as formas de organizações antigas não podem mais serem postas. A superação da mulher do médico em sustentar e prover o melhor possível os outros seis, em destaque o velho da venda. Alias, acho interessantíssimo o rádio dele figurar com sua aparição. Mas, a descrição das ruas, dos locais, os cegos vagando, os dejetos, a degeneração, a morte, os animais soltos... E por mais que o livro aparentemente nos presenteie com um final feliz, talvez o melhor final para fins práticos da história fosse que a cegueira permanecesse, que o véu branco continuasse sobre eles. Decerto que a sujeira e putridão existente nas cidades e em breve nos campos, transformaria nosso planeta em um grande caminhão de lixo. Só que como se reorganizar depois de tudo o que passaram e fizeram? Depois de tudo que consideravam antes sujo e indigno? Como se organizar novamente de maneira a limpar a cidade? E os cegos, realmente cegos? Como estes ficam? Será que todos irão querer voltar a suas casas regulares? Será que a inflação voltará a ser controlada e as pessoas que perderam todo seu dinheiro... O que fazer? Não tenho a resposta, certamente será preciso mais do que um par de anos para que tudo retorne a regulariedade e provavelmente o mal branco não alterará em nada as pessoas, porque depois de um tempo, todos esquecem e voltam as suas vidas regulares. Sei também que após a felicidade e extase de voltar a enxergar, todos se voltarão para o estado em que se encontram, como seu mundo se encontram, onde há pessoas mortas em todas as ruas... Um livro bom em seus detalhes, em não representar uma sociedade útopica que teria se mantido organizada, em representar o pior do ser humano. E o desfecho, fosse "bom" ou "ruim", eles vontando a enxergar ou não, permanece como uma incógnita o futuro destes ex-cegos.


Citações

"Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa somos nós"

"Quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos."

"O mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos."

"Que tendo começado por mandar as mulheres e comido à custa delas como pequenos chulos de bairro, é agora a altura de mandar os homens, se ainda os temos aqui, Explica-te, mas primeiro diz-nos donde és, Da primeira camarata do lado direito, Fala, É muito simples, vamos buscar a comida pelas ossas próprias mãos, Eles têm armas, Que se saiba só tem uma pistola, e os cartuchos não vão durar-lhe para sempre, Com os que têm morrerão alguns de nós, Outros já morreram por menos, Não estou disposto a perder a vida para os que mais fiquem cá a gozar, Também estarás disposto a não comer se alguém vier a perder a vida para que tu comas,perguntou sarcástico o velho da venda preta e o outro não respondeu."

"Não irão apenas os homens, irão também as mulheres, voltaremos ao lugar onde nos humilharam para que da humilhação nada fique, para que possamos libertar-nos dela da mesma maneira que cuspimos o que nos lançaram a boca." - Mulher do médico

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