domingo, 29 de setembro de 2013

Dia 3 Chegando

Minha cabeça parece que vai explodir. Isso é uma certeza. Os sons parecem distantes e eu tenho certeza que o chão não está onde deveria estar e que isso são gritos. O líquido quente que está escorrendo pelo meu rosto é sangue. Não sei se é meu. Não sei nem se consigo levantar.
Merda. De repente todos os sentidos estão acordados. Preciso sair daqui. Rápido. O ônibus está virado. Os passageiros estão nos mais diversos estados e céus, o quanto eu daria para não ter mais que ver gente morta. O quanto eu daria para passar uma semana sem gente morrer na minha frente.
A tonteira é imediata. Ninguém mandou eu ficar de pé tão subitamente. O sangue é do corte da minha cabeça mesmo, tenho certeza que tem algo errado por eu achar isso uma boa notícia mas com a quantidade de drogas que as pessoas usam hoje em dia para se manterem sobrevivendo é melhor evitar esses contatos diretos. Intimidade demais.
A perna esquerda dói. Muito. Não o suficiente para eu não conseguir arrastá-la. Me suspendo pela janela já quebrada, uma senhora no ônibus começa a gritar por ajuda. Seu braço parece preso nas engrenagens e eu sei que não tem jeito de tira-la dali sem matá-la de tanto sangramento. Um dos  sujeitos que estava dormindo nos bancos se aproxima dela. A expressão no seu rosto me diz que está na hora de ir embora.
Estar do lado de fora abafa menos os gritos dela do que eu imaginava. A poeira está absurdamente alta e metade dos prédios não existem mais. Uma explosão. Ou implosão mal feita. Se foi programada em breve uma patrulha estará conferindo. Se não foi podemos contar com uma duzia de pessoas vindo conferir.
Regra de ouro. Sempre é melhor sair da estrada principal. Regra de prata, ao sair da estrada principal tome cuidado com as pessoas que também conhecem a regra de ouro. Me arrasto entre 2 prédios , um deles está porcamente de pé ainda, o pórtico totalmente destruído. O outro, bem, parece normal tirando o fato que aparentemente o último andar se encontra no chão. Caminho entre os destroços, o avanço é lento, há alguns outros gritos do ônibus agora o que significa que preciso chegar até a rua paralela.
Faço o caminho sem parar para repousar. A entrada do distrito 3 é a menos de sete minutos. Pessoas se aproximam, elas passam por mim sem olhar duas vezes. Chego a rua lateral e preciso de pelo menos dois minutos no umbral de um prédio para me recuperar.
A rua está aparentemente vazia. Sigo por ela. 
Em pouco tempo já posso ver a placa verde desgastada feita em tempos melhores onde esse era um belo distrito residencial. Um dos mais caros na realidade. Ainda dá para ver os restos da cancela e das guaritas de segurança. Condomínios fechados de casas.
Minha cabeça roda e eu tento me concentrar nos meus passos o que esta se tornando bem desagradável considerando o formato que a minha perna está fazendo. 
Cama. Tudo que eu quero. Não vou chegar até o ferro velho. Estou perdendo sangue demais para isso e sei que a trilha que estou deixando não é a mais bonita de todas . Talvez eu esteja exagerando quanto a quantidade de sangue. Talvez até provável, mas não consigo me concentrar.   Faço até o final da primeira fileira de apartamentos,não  consigo nem lembrar mais que casa que é segura. As chaves estão no bolso do meu casaco, consigo senti-las. Acho que era a terceira casa da esquerda.  Ou talvez da direita ou... Não consigo lembrar.
Minhas pernas já não me mantêm. Só preciso sentar um pouco aqui na calçada, só um pouco....



sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Dia 2 Caminho.

Acordar suada após um pesadelo já é rotina. Os sonhos são constantes e toda vez que não deito de exaustão eles vêem. São mais lembranças do que sonhos na realidade e quando acordo só posso desejar que durante o dia de hoje não ganhe nenhuma nova memória para abastecer esses sonhos.
A alcova é bem diferente dos outros esconderijos. Me lembra mais um lugar seguro que todos os outros. No inicio eu queria passar todo o tempo aqui, para aproveitar antes que algum desastre ocorresse e eu deixasse de existir. Com o passar das semanas, meses, eu não acho mais que irei morrer a cada esquina. Então deixo para vir em emergências apenas. Mais provável do que eu morrer é alguém me tirar esse lugar se me virem entrando sempre.
Outra coisa sobre a alcova é que ela não recebe luz matinal. Nenhuma. Apenas depois de meio dia o sol começa a entrar o que torna impossível olhar a vista de tarde. E é esse sol que me acorda juntamente com meu estômago reclamando.
Chuto uma hora da tarde agora, quase 16 horas desde a última refeição. Coloco a cama no lugar de antes, levanto os objetos que deixei cair enquanto entrava de madrugada e estou pronta para sair. Abrir os trincos,  a porta, fechar a porta, fechar os cadeados. Rotina de segurança.
Saio do beco com cuidado, a rua já está lotada de pessoas, em busca de algo o que comer, de algum serviço que possam fazer em troca de abrigo ou alimentação. E existem os grupos nos cantos querendo pegar o que as outras pessoas conseguirem.
Logo quando tudo isso começou as pessoas buscaram juntar-se em grupos, em geral com sua própria família. O governo diz que se uma pessoa a cada 4 trabalhar diariamente não vai faltar nada. Mentira. Os vizinhos do meu tio moram em um grupo de cinco, os três adultos trabalham todo dia e as duas crianças parte do dia. É isso ou ser vendida e bem, ninguém quer ser vendido.
Mal saio na principal e o cheiro me enoja. A avenida está infestada de pessoas nos seus mais diferentes estados. Corpos jogados nus no chão, mortos por seus parcos pertences. Crianças tentando saquear o pouco que restou. Casas abertas, vidros quebrados. Isso é o que o apagão faz. Você não precisa ter medo que alguém te veja, ninguém vai pegar seu número de identificação, ninguém vai saber que foi sua culpa. você vai poder alimentar sua família. Agasalhar-la considerando que o inverno está na esquina. Vai poder comprar remédios. Uma chance muito boa para deixar passar e assim a oportunidade faz o ladrão.
Eu prefiro ficar na minha. Lá no inicio, eu ainda tentava pegar alguma coisa, mas fui castigada o suficiente para preferir me esconder. Quanto menos atenção melhor.
Coloco o capuz e caminho até o ponto de ônibus,o que na realidade é só uma plaquinha. O tempo de espera pode ser qualquer coisa entre um minuto e três horas e por mais que nada seria tão agradável (exceto por comida) do que colocar os fones de ouvido, preciso ficar atenta.
A caminhada até  o ferro velho é de cinquenta minutos. A maior parte do caminho é pelo distrito 3 o que significa que já roubaram tudo o que podiam de lá há muito tempo então dá para caminhar mais tranquilamente. O que é bem diferente daqui onde todos te encaram tentando calcular com os olhos quanto você vale.
O ônibus chega antes que alguem decida que eu sou um bom alvo. Lembro subitamente porque qualquer caminhada é melhor do que o transporte público. Nem falo só sobre o fato de quase não haver cadeiras mais, da sujeira e das pessoas dormindo. Não dá para escapar no ônibus.
As janelas podem estar abertas, dando a ilusão de liberdade. Só que a verdade é que eu estou presa aqui pelo menos até a próxima parada. 7 minutos até ela alias. São 19 minutos até a entrada 1 do distrito 3. Tento me concentrar nisso mais do que tudo.
Lily vai ficar tão feliz quando souber o que eu estou levando. Ela e Jos já devem estar voltando das suas obrigações por essa hora e com sorte o velho guardou um pouco de comida para mim. Ele vai ficar chateado por eu não ter ido ao campo. Hoje quero fingir que não preciso ir lá, que não preciso nunca mais ir. Que eu posso simplesmente voltar para o ferro velho, concertar algumas coisas, ver tv - a quanto tempo eu não vejo tv?- beber algo gelado e deitar ao relento. Fingir que amanhã não haverão consequências para esse dia de folga.
Ele não vai falar nada quando me ver chegar assim, ele nunca fala. Algo como você já está encrencada mesmo, que pelo menos você fique feliz até tudo cair na sua cabeça. Acho gentil da parte dele, quase acredito que ele entenda. O que só faz com que eu tenha vontade de chegar mais rápido. O bom de andar é que você faz seu pas-

domingo, 15 de setembro de 2013

Dia 1 Escuridão

Sempre imaginei que a dor de um tiro fosse insuportável. Que se você não morresse com a ferida a dor te matava. Por enquanto está sendo um pouco decepcionante, devo dizer.
Não se engane, você realmente sente que abriram buracos entre os seus tecidos e o sangue quente encharcando a roupa não faz a sensação mais prazerosa. Mas eu estou viva. E isso é mais do que eu esperava.


Eu tinha cinco anos quando a crise aconteceu. O mundo ficou sem energia durante 11 dias. Não deveria ser um grande problema, não? Eu achava que não. Mas, o mundo que se reergueu depois desses onze dias é bem diferente do mundo que havia antes. Em sentidos que eu não posso nem começar a entender.
As pessoas costumam falar como era o país antes da crise. Como tudo era organizado e todos viviam felizes. Mentira. Mesmo sem livros para apoiar minha opinião, eu afirmo que não, as coisas não eram tão boas antes. Mas, pelo menos eles tinham luz...
Tenho um especial apreço pelas noites escuras. Quando decidem desligar todas as luzes da cidade sem aviso prévio. Não sei se é realmente de propósito, acho que com a quantidade de assassinatos que acontecem nesses momentos, deve ser mais para controlar a população. Medo é sempre um excelente controlador.
Há poucas luzes nas ruas e no geral bem fracas, famílias buscando um lugares para se refugiarem. Um lugar que as proteja dos que andam na surdina. Verdade seja dita, não há reuniões dos grupos rebeldes nas noites escuras. Quem tem casa, se tranca. Quem não tem, arranja um lugar vazio, para se trancar também. Eu entendo. Ninguém tem tempo para apreciar as estrelas. Essa gente mal tem tempo para sobreviver. Entendo eles não se divertirem observando a lua. É difícil se divertir quando tem sombras buscando sequestrar seus filhos. Crianças e seu alto valor de revenda.
Também não é seguro para mim. Tenho meus esconderijos fixos já. Um em cada canto da cidade pelo menos, por causa das emergências. Nem todos muito confortáveis, mas esse aqui, esse aqui tem até uma cama. E um rádio. Tudo o que uma garota poderia sonhar.
Passo pelas pessoas correndo por um lugar, entrando no beco. A escadaria de emergência do prédio 156 da rua 17 e pronto. Em alguns minutos estou na porta do terraço. Destranco a porta, abro o cadeado. Entro, passo os trincos. Todos os sete. Quando não se tem muito, o esforço para proteger o que se tem pode ser abismal.
A escuridão me engole com a porta fechada, mas eu sei meu caminho. A parte mais interessante desse esconderijo é a alcova. Pé direito alto, no topo de um prédio de 14 andares, faz com que eu me sinta segura. E também me proporciona uma bela vista do céu da cidade. As estrelas se encontram absurdamente visíveis e não há barulho de carros nas ruas, as patrulhas não passam quando não tem luz.
Puxo a cama para logo abaixo da alcova. Melhor dormir assim. O peso do pacote no meu bolso não pode ser esquecido. Eu sei que tinha que voltar para casa hoje, mas sei que eles vão entender que não é possível. Provavelmente vão ficar mais surpresos de eu realmente ter procurado um lugar para ficar. Tantas coisas para resolver amanhã....
Fecho os olhos e deixo o cansaço tomar conta de mim. A luz do dia trará seus problemas novamente.